quinta-feira, 18 de novembro de 2010

COLUNA DO BAZO (LOURIMAR BORGES)

Terno De Reis
          Foram meses de ensaios e preparativos. Mas, enfim, o terno das “Pastorinhas” saiu. A felicidade de Dona Adélia do velho Gé, pais de Genalson, era visível, mesmo com um pouco de preocupação quanto ao rumo que o reisado poderia tomar. A música tema de tão óbvia parecia descrever o que aquele contingente de moças representava. Embaladas pelos versos de Noel Rosa e João de Barro, as “pastorinhas prá consolo da lua, vão cantando na rua, lindos versos de amor”.
          Noite de lua, estrela Dalva a postos, clareava a Praça Getúlio Vargas para aquela demonstração singela de fervor religioso e leve profanação juvenil. À frente do grupo de moças caracterizadas de “pastorinhas”, Zé Olegário, Ubirajara e Cordeiro puxavam o cortejo como se fossem os Três Reis Magos. E eram, segundo as determinações e os exaustivos ensaios comandados todas as noites, por Dona Adélia, na sala de visitas de sua casa. Casa que mais tarde abrigaria o “Senadinho”, templo de danças e requebros mundanos entre outras lambanças, que em nada lembrava o ambiente familiar daqueles ensaios. A sala era iluminada por uma luz de candeeiro, como as demais casas da cidade. Vez por outra uma participante, quer dizer uma pastorinha, trazia de sua casa uma “petromax” ou a novidade do “aladim”, para complementar a iluminação da sala.
          Havia na maioria das moças da cidade um certo desejo, inconfessado, em participar daquele terno de reis. Mas como numa lição bíblica, muitos almejavam o céu, mas poucos eram escolhidos por Dona Adélia. Com sua palmatória de professora leiga, utilizada como a batuta de uma maestrina, ela regia o compasso da coreografia e mantinha a disciplina do grupo.
          Vestido com uma camisola ou uma mortalha vermelha, não se sabe bem o que aquilo representava, Zé Olegário, ao centro do abre alas ou da comissão de frente do cortejo, carregava uma avantajada cruz de madeira. Até hoje se comenta o que aquela simbologia da cruz poderia traduzir, já que Jesus Cristo mal acabara de nascer em Belém e um dos Reis Magos já trazia e expunha a futura logomarca do seu calvário. Ao lado esquerdo do desfile, trajando uma vestimenta semelhante, só que amarela, Ubirajara carregava uma panela de barro, tomada de empréstimo em casa de Dona Dora Santana, vizinha de Dona Adélia. A panela cheia de areia representava o incenso. Do lado oposto, Cordeiro vestia um roupão azul e trazia nas mãos algumas raízes de aipim e mandioca. Segundo Dona Adélia, o aipim e a mandioca significavam os frutos de nossa terra, o que tínhamos a ofertar ao “Menino Deus” e ao mesmo tempo pedir chuva, abundância e prosperidade para todos. Era muito significado, muita profundidade, prá tão pouca raiz.
          O terno deveria dar uma volta na praça e parar em frente a casa de “seo” Francisquinho, para uma exibição, já que ali estava hospedado o vigário da nossa paróquia, Padre Nicanor. Após esta apresentação, o terno entraria na igreja onde as oferendas seriam depositadas, finalizando por aquele dia o desfile das “Pastorinhas”.
          Não foi isto que aconteceu. Lindú, irmã de Dona Adélia, de olho na viuvez de “seo” Vicente Santana, sugeriu que o terno fizesse uma rápida demonstração em frente à casa de “seo” Ioiô Santana. Não deveria. Cada um que se aproximava da sua residência era saudado com uma dose de “Cinzano” ou de “Alcatrão de São João da Barra”, em homenagem ao nascimento de seu primeiro neto. Dos três Reis Magos, apenas Zé Olegário ainda não era iniciado no caminho do pecado. Os demais já transitavam com certa desenvoltura entre copos e garrafas de “Jurubeba Leão do Norte”, tanto no bar de Josué como no de Zequinha de Horacinho. 
          Enquanto isso... “a estrela Dalva no céu desponta e a lua anda tonta...” tanto quanto os Reis Magos que puxavam o terno das “pastorinhas”, para desespero de Dona Adélia. O primeiro tropeço no desnivelado piso da praça, levou ao chão o reinado de Ubirajara e a panela de barro de Dona Dora. Os assessores da corte se apressaram em remediar o acidente, trazendo um bule de alumínio, requisitado na cozinha de Tia Jola, como forma de recompor a nobre figura. Melhor teria sido deixar o rei sem panela, já que o bule acabou por transformar o Rei Bira numa espécie de “aladim”, o gênio da lâmpada. Na noite seguinte o terno voltou à praça sem a presença aristocrática do Rei Mago Ubirajara, destituído do trono por Dona Adélia e substituído por sua majestade, Bade de João Macêdo.
          Era sinal de que outras panelas continuariam caindo e quebrando.

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