COM O CORAÇÃO NA MÃO
Lourimar Ferreira Borges
O “disco-manifesto” do tropicalismo, “Panis et Circenses”, de 1968, trazia entre outras ousadias musicais e poéticas, a inclusão da música “Coração Materno” de Vicente Celestino, em seu repertório variado e revolucionário. O estranhamento era causado por razões estéticas, já que conhecíamos a dramaticidade cafona e profana da canção, desde os espetáculos circenses que faziam parada em nossa cidade. O circo em Piritiba, como em qualquer cidade interiorana, era um acontecimento. Chegavam e logo arreavam seus trastes e tralhas na Praça Getúlio Vargas e em poucos dias já era anunciada, pelas ruas da cidade, a sua estréia. Este anúncio era feito por um palhaço com pernas de pau, um megafone na mão, seguido por uma tropa de meninos barulhentos A cada bordão ou pergunta proferida pelo palhaço, a garotada respondia com entusiasmada participação. Mas esta participação tinha um preço. Após o cortejo do “bando anunciador” do circo, cada um dos meninos que fazia coro para o palhaço, tinha a seu braço marcado com uma tinta preta que servia como credencial para o ingresso gratuito na sessão da noite. Uns e outros que não eram muito afeitos ao banho vespertino, se limitavam a lavar o rosto, molhar o cabelo, afim de não perder a marca no braço e o conseqüente acesso ao circo. As atrações de um circo pouco diferia de um para outro. Os acrobatas, os trapezistas, o palhaço, a rumbeira, o engolidor de faca e fogo, o mágico e os dramas. Ah! os dramas... eles eram as atrações finais de cada espetáculo. Mas até nisso, eles se pareciam. O repertório da dramaturgia circense não ia além de “A Louca do Albano” (Nunca entendi o que era Albano. Se um determinado local onde vivia a louca ou se a louca era o próprio Albano, o que não chegava a fazer qualquer sentido a época), “O Céu espera por nós”, “Coração Materno e “A Paixão de Cristo”, claro. Foi em um destes circos, cujo nome não lembro, que a “Paixão de Cristo”, por pouco não descamba para a galhofa, para a baderna. Após a cena da morte de Cristo, a catarse final viria com a sua ressurreição, quando as luzes se apagavam e uma sonoplastia desastrada, com tambores rufando, folhas de zinco troando, até sirene de ambulância tocando, criava o clima para a grande momento. Só que ele não veio. A geringonça, espécie de pequena plataforma móvel, que elevaria Cristo às alturas, emperrou no início da cena, não baixava nem subia, deixando Cristo a meio caminho entre o túmulo e a glória dos céus. A platéia percebeu o vexame e começou a assobiar, gritar “quero o meu dinheiro”, vaiar, para desespero do contra regra que interrompeu a cena ou o que dela restava, para pedir desculpas, já com as luzes acesas.
“Coração Materno” tinha o efeito arrebatador de uma novela radiofônica. Todos os ingredientes estavam ali na canção do Vicente Celestino, que era transposta para o palco, com toda a carga emocional de um dramalhão exacerbado. Paixão desenfreada, juras de amor, fé religiosa e mãe. Mãe é um problema. Comove, sensibiliza a todos, menos a heroína da encenação dramática que brincando pediu ao pretendente, o coração da sua (dele) mãe como prova de amor. A platéia silencia, quase não respira, quando o herói apaixonado entra na igreja, se aproxima da velha rezando no altar, e crava-lhe o punhal no peito. Feito um médico legista do INSS ou um magarefe de abatedouro, o desalmado arranca o coração da “véia” e parte para entregá-lo a sua amada, a esta altura já completamente maluca.
Os espíritos de porco, habituais, andaram espalhando nos bares e nas barracas da feira, que o “coração da mãe” era meio quilo de fígado comprado no açougue do pai de Lozinho. Pouco importava. Mais realismo que isso, o “coração da mãe” deixaria de ser um problema do circo, para se transformar numa diligência do Delegado Maroto Sampaio . “A platéia aplaude e ainda pede bis, a platéia só deseja ser feliz”, como na canção de Gonzaguinha.
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