Na infância acompanhei meus pais em alguns de seus deslocamentos a Juazeiro –Bahia. Meu pai, Pedro, viajava em missão comercial, buscando suprimentos para o seu armazém de secos e molhados, enquanto Mãe Maria procurava atendimentos médicos e visitava familiares. Em uma destas visitas machucou uma prosaica calosidade em seu dedo mindinho do pé esquerdo que por pouco não lhe custou a vida. Uma simples inflamação descambou rapidamente para um caso de tétano, requerendo uma intervenção cirúrgica de emergência, para amputação do dedo lesionado, sem os regulares exames pré-operatórios. Realizada a cirurgia e logo após os exames de laboratórios, contrariando a lógica para estes procedimentos, algo impensável nos dias de hoje, constatou-se um elevado índice de glicemia, tornando imprópria a intervenção cirúrgica. Mãe Maria era diabética. Mas, o estrago já estava feito e só restava a equipe do Hospital de Juazeiro, tendo à frente Dr. Muccini o inicio de uma luta contra a amputação de uma área maior do pé, ou todo o pé, pela difícil e talvez impossível cicatrização do pequeno local onde se deu a intervenção. Foram dias de tensão e de acompanhamento da dedicação de uma equipe médica que comovia e despertava a atenção de toda a unidade hospitalar pela tentativa de debelar um processo de necrose que se avizinhava, devido ao elevado percentual de açúcar no sangue de Mãe Maria. Enfim, a possibilidade de perda foi contida e o que se deu na área amputada, necessária pela celeridade da necrose, não impediu a sua locomoção e o uso de sapatos, alpercatas, sandálias ou tudo aquilo que a sua vaidade, que nunca teve, sinalizasse.
Essas lembranças infantis que vivi sem atentar para a gravidade porque passava Mãe Maria e que só era percebida pela expressão de familiares, quis reviver muito tempo depois, já nos anos 70, voltando a Juazeiro. Não por qualquer semelhança com o angustiante quadro clinico presenciado, mas pela cidade, pelo Rio São Francisco, a ponte, Petrolina, o apito do vapor, o movimento de uma cidade grande e bem diferente daquela onde vivíamos e que foram gravados por meus olhos de menino.
Em Piritiba, de férias da escola e do banco, para chegar até Juazeiro teria que ir aJacobina e de lá embarcar em um ônibus no final de cada tarde. Passei praticamente o dia em Jacobina tendo me hospedado no Hotel Brasil, hoje transformado em uma das muitas casas comerciais do moderno calçadão da cidade. Após o almoço, me recolhi ao quarto onde estava hospedado, coloquei o travesseiro na cabeceira e me recostei para a leitura de um jornal ou revista que sempre me acompanharam. De vez em quando sentia que algo se contorcia em minhas costas, em um movimento esporádico, mas que despertou a minha atenção. Cada vez que comprimia minhas costas contra o travesseiro sentia que estas contorções aumentavam bem como a desagradável sensação de que havia alguma coisa viva sob a fronha. Pulei da cama, fitei o travesseiro e fui em busca de alguém da limpeza do hotel para me ajudar na tarefa de descobrir qual era o exu escondido debaixo dos panos. O auxiliar de limpeza entrou no quarto e sem esboçar nenhuma surpresa jogou o travesseiro na área em frente ao quarto e começou uma sessão de paulada sobre o mesmo. Logo nas primeiras bordoadas sobre a fronha branca o travesseiro foi adquirindo uma coloração vermelha encharcando de sangue quase toda sua extensão. Finalmente foi apresentado o causador do meu desconforto: um rato de esgoto bigodudo e sarado que poderia ser confundido com um preá, tal as suas dimensões.
Embarquei em direção a Juazeiro tendo a impressão de estar sentindo arrepios, febre, frio, a um passo da leptospirose. Foi só impressão e não um sonho como quem se acorda de um pesadelo.
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